30/05/2016

Viagens na minha terra - Sopa de cação



O cação, tanto quanto me recordo, nunca esteve presente na mesa da minha família e a primeira imagem que tenho deles, é de os ver na Nazaré, pendurados como peúgas, na corda da roupa a secar. 
Eu era então um miúdo de sandálias, fato de banho tipo cueca e o eterno chapéu de palha, a quem tudo espantava e que ficava a olhar para as janelas, sem entender bem qual era a ideia de ter ali pequenos tubarões pendurados. 

Esta viagem tem , na minha cabeça, dois pontos de partida. O cação e a açorda (ou sopa) alentejana.
Essa açorda, foi durante muito tempo, uma das poucas referências a uma culinária “externa” que, por algum motivo, incluía o nome da região de origem.   
Volta e meia, a pouca vontade de comer que o meu pai sempre demonstrou, dava-lhe para querer uma destas sopas de pouca substância. Das outras sopas que enchiam quase em segredo as cozinhas alentejanas, eu então nada sabia. 
Para esta sopa de pão e água, convocavam-se os coentros, visita rara nesses tempos e que hoje eu uso como se tivesse nascido num campo cheio deles.


Muitos anos e algumas sopas de cação mais tarde, estava eu despreocupado e bem acompanhado ali para os lados de Avis, quando, quase à hora em que quem trabalha vai almoçar e quem está de férias nem por isso, fomos ao Fava para beber uma imperial que nos limpasse as gargantas daquele calor quase obsceno. Ao entrar deitei uma olhadela à ementa do dia (só para saber) e lá estava. Sopa de cação!
Gosto tanto dessa sopa! disseste, e eu propus que levássemos uma dose para comer mais tarde. Horas depois, reaquecida a sopinha, fez de almoço, numa sombra frente à piscina e foi a melhor sopa de cação de sempre. Nesse dia ainda voltámos à Tasca do Montinho para elogiar e agradecer à Maria José toda a arte daquele preparado que parece simples, mas cujo sabor nunca consegui repetir exactamente.  Os detalhes da quantidade de farinha, o vinagre, e a qualidade pão, do alho e dos coentros bem como a arte culinária da Maria José, que nasceu e cresceu rodeada de todos estes produtos, enquanto eu ainda sonhava com strogonoff (com cogumelos de lata), arroz à valenciana (com salsichas e cenouras) e o infame caril de lulas dos anos 70 (mau caril, natas, maçã ralada e até banana) que há muito desapareceram da minha ideia de alimentação.  
 E assim, de vez em quando faço uma sopa de cação para ver se acerto. Nunca me sai mal, mas nunca enganaria ninguém, se fosse colocada ao lado dessa tal…

Sopa de cação para dois


  • ·         2 postas de cação
  • ·         azeite
  • ·        2 dentes de alho
  • ·         1 molho de coentros
  • ·         1 colher de sopa com farinha
  • ·         2 colheres de sopa com vinagre de vinho branco
  • ·         água
  • ·         pão alentejano

Temperam-se as postas de cação, com o sal que merecem. Picam-se os coentros (frescos e muitos), bem como os alhos. Cortam-se fatias finas de pão duro alentejano e colocam-se numa tigela, à espera do caldinho.
Para começar, vai ao lume uma panela com azeite onde depois entram os alhos que fritam um pouco e antes que escureçam recebem metade dos coentros picados e o cação.
Numa tigela, desfazer a farinha num copo de água e  juntar o vinagre, misturando bem. Juntar ao tacho e mexer por causa da farinha. Para acabar junta-se a água a ferver necessária para o caldo e deixa-se cozinhar durante 15 minutos. Depois entra o resto dos coentros picados e serve-se, numa terrina onde já estará o pão alentejano, impaciente e bem cortado em fatias muito finas. 
Como sempre, um fio de azeite como último toque antes do ataque.  

Esta viagem demorou a encontrar o seu destino, desde as ignorâncias iniciais até à autonomia que me permite agora recordar sempre que a tal me proponho. E querer mais. 

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