18/09/2018

Afinal o que importa?




Uma e outra vez regresso à praia das Cabanas para descansar, passear sem rumo, pela praia, mas  sempre também para visitar a Noélia.








Faço-o por gostar de vê-la, por causa da sua boa comida e porque me faz pensar em assuntos que me interessam, relacionados com a gastronomia nacional e os seus caminhos.
Desta vez até vim sózinho, descansando e comemorando o estágio no Boi-Cavalo, ainda bem recente, para ser motivo de conversa. E, com esta "vasta" experiência do lado dos fogões, posso incluir temas novos na conversa com a Noélia, ela  que num dia trabalha mais que eu durante a totalidade do estágio. Mas imagino que ela desculpe a excitação deste aprendiz de cozinheiro.




***

A Noélia acha que devia ter mais formação, diz que não sabe nada de especial, que são os bons productos que a motivam, diz (por outras palavras) que só tem memórias e coração, mas está a ser muito modesta. O que ela faz é bem difícil. Preparar, temperar, cozinhar mantendo sempre presentes mesmo no nosso palato, as memórias e o coração, que por acaso é o que mais falta em muitos dos restaurantes Portugueses que visito.

Principalmente nos novos.

Memória e Coração. Memória e Saudade. Memória e Reencontro. Desenhar na mesa um caminho até uma felicidade que foi vivida mas mal entendia, quando muitos dos sabores eram apenas marcos para o futuro.

Lembro-me de alguns dos meus:

Não gostava das favas. Da Rica, da Aporcalhada, da cozida para acompahar peixe-frito e hoje quero-as todas. Salivo só por pensar nisso.
A carne guisada mais o seu bizarro ritual na hora de comer, que seguíamos na casa paterna e incluía esmagar as batatas e misturar arroz branco, molho, carne e os legumes esmagados(!!!).
Os croquetes e os pastéis de massa tenra. Os bifes de cebolada. O peixe frito. O arroz de tomate. As morcelas. As pataniscas


O contínuo chegar à mesa com tempo para a sopa, salada, prato principal e fruta. As conversas demoradas e o xiripiti final só para o Avô. Tudo isso pertence a um caminho que ainda sigo e quero deixar, como sugestão, para os próximos.
Frite-se o carapau pequeno! Coma-se a cabeça! Podem ser albardados, de escabeche ou apenas fritos sem mais truques. Tem de ser bem fresco, bem limpo, bem seco, bem enfarinhado, bem sacudido e bem frito em óleo aquecido no ponto (qual?). Tem de ser preparado por quem gosta de o fazer. Como a Noélia.

Ela serviu-me um tártaro de besugo, na companhia da espinha (cabeça, espinha e rabo) bem frita. Confesso que gostei mais das procurar bochechas, escarafunchar em busca do ínfimo cachaço e demais pedacinhos fritos que comi, que do actor principal. Não que o tartaro estivesse fraco (podia estar mais frio, mas era fresquíssimo, bem cortado e bem temperado), mas o prazer de encontrar aquelas preciosidades agarradas à espinha e assim comer o que podia ser tomado por decoração, deu-me um gozo maior. Até algumas espinhas bem fritas eu comi!!!

Ao contrário do que pensa a Noélia, acredito que  formação adicional não é o que ela mais necessita.  Ela precisa é de mais tempo para as memórias, mais e melhor espaço físico para trabalhar, mais calma para nos apresentar tudo o que continua a animar as suas cansativas jornadas de trabalho, tudo o que ela ainda tem na memória. Precisa de calma e tempo, sobretudo para pensar no que é realmente importante para ela.

Muitas vezes já me ocorreu que a Noélia devia reduzir o número de mesas, mas ela quer uma sala do tamanho do seu coração, quer poder atender amigos, conhecidos, passantes, curiosos e ocasionais, todos por igual. É essa fé que a anima, e os que como eu queriam ter mais Noélia e menos clientes, são (somos) apenas invejosos.

...

Hoje comi arroz de ostras ao almoço.

O arroz podia ter ficado mais 30 segundos no tacho, mas estava delicioso no sabor e generoso na quantdade. As ostras eram tudo o que uma ostra pode ser e, na companhia da salicórnia, ficam melhor ainda - tanto as ostras como a salicórnia, são de bem perto e, mesmo que o uso dessa halófita seja quase novidade por cá, a planta já existia há muito.
Faço questão de almoçar e não jantar na Noélia, pela luz e sobretudo pela calma com que a refeição decorre, ainda sem a carga acumulada de stress que a todos vai afectando ao longo do serviço.

Mesmo assim, tão bem tratado, ia olhando para as pataniscas de polvo, para o peixe frito com açorda ou migas de tomate , as gambas , as douradas do mar e demais petiscos que circulavam à minha volta, mas em especial os fritos. Essa coisa antiga, quase pé-descalço, que nunca se viu nas mesas de festa e hoje poucos conseguem executar em condições. O peixe, separado do mar pela fritura que, quando bem feita como é o caso, mantém humidade e sabor nesses pedaços protegidos que só merece disfrutar quem procura entre as espinhas, pois ficar só pelas postas maiores é não saber da missa metade

Afinal o que importa?  A conversa. O pensar. Imaginar. Executar. Gostar

O que importa é gostar muito

PS:
Hoje vou de novo, almoçar à Noélia. É sempre melhor que uma novidade, pois já sei que vai ser bom só não sei o que vai ser. Vou acompanhado  pela Andrea, pelo Miguel e pela pequena Carolina. São  amigos de há muito, que só hoje vão conhecer este local de bem comer. O meu preferido.
Espero que gostem.

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