07/09/2016

Açorda de conquilhas



Para fazer esta receita, são necessários poucos ingredientes, mas um deles exige um pouco do cozinheiro acidental. As conquilhas, que devem ser apanhadas na praia.  

Procure-se para isso, uma praia de areia fina, e longas marés. Sem rochas ou ondas alterosas. Uma praia onde seja possível a vida para as conquilhas, evitando locais como o Guincho ou a praia fluvial de Constância, por aí não haver animais destes. A zona da Ria Formosa é especialmente indicada, mas sei de quem, com muita paciência, tente e consiga apanhá-las na Costa de Caparica. 

Nem pensar em ir comprar conquilhas ao mercado ou substituí-las por qualquer outra coisa. 

Na praia deve-se optar pela maré vazia, e pelo método mais simples possível. Enterrando ligeiramente um pé na areia(numa zona onde a água chegue), rodar o mesmo pé, levantando um pouco da referida areia (aí é onde as pobres vivem e se julgam a salvo), deixando à vista os pequenos bivalves. Destes, recolher apenas os que apresentarem as duas metades da casca unidas.  Deve-se ter um balde, um saco ou uma garrafa vazia para transportar as conquilhas até casa, com alguma água que permita prolongar-lhes a vida até ao momento fatal (para elas) de serem salteadas. 

Durante a recolha evite-se o contacto com desconhecidos, que pareçam levar a cabo a mesma tarefa, pois o risco da competição, pode resultar na apanha excessiva, com posterior impacto na receita.

Como já aconselhei, não apanhe demasiadas – o excesso leva a mente pelos caminhos da gulodice desenfreada, em que se consomem as conquilhas como se fossem tremoços, umas atrás das outras, molhando no fim o pão no belo molho, quando já nada mais há para comer. Não queremos isso!
Não pare de apanhar cedo demais, também. Se ao olhar o resultado, vir 5 ou 6 conquilhas, o mais certo é desanimar e abandonar o fruto do seu labor, para se dirigir a um qualquer antro onde lhe sirvam bifes, lagostas ou sopa de feijão com couves.

Tendo recolhido a quantidade justa de conquilhas, na praia certa, sem cometer pecado maior que retirar os pobres animais do seu habitat, para acabar com eles na frigideira, dirija-se a casa pensando no que se pode fazer para os cozinhar, ou pensando num amor fugidio, ou mesmo nos versos do Aleixo ou de José Duro, se souber alguns.

Na hora da verdade, não queremos panacotas, tártaros ou em geral pratos com nomes estrangeiros.  
Não espere milagre maior que a simplicidade do sabor (se o souber preservar) e uma magra recompensa para o estômago. 
Pode ser uma canja, um arroz, pode até deliciar-se com esparguete de conquilhas, mas recomendo a mais pobre das receitas. A açorda.
Para isto deve ter em atenção os poucos mas importantes detalhes que se descrevem.

Açorda de conquilhas para um

  • ·         O pão deve ser “carcaça da véspera” – 2 unidades
  • ·         Os alhos se possível dos roxos -   2 unidades do tipo dente
  • ·         Coentros verdes, frescos e espigados, melhor se acabados de apanhar no quintal – muitos
  • ·         Um bom ovo de galinha,  fresco e cru
  • ·         As conquilhas possíveis
  • ·         Sal, pimenta e limão  para temperar


Migue-se o pão e junte-se uma pouca de água, apenas para o humedecer
Escolha uma frigideira, nem grande nem pequena – se não sabe o que é uma frigideira, pode pesquisar no Google e depois voltar aqui.
Na frigideira deite-se azeite a cobrir o fundo. Leve-se então a frigideira ao lume e juntem-se os dentes de alho descascados e ligeiramente esborrachados (pode-se pedir a um vizinho ou a um policia que vá a passar que faça isto, desde que lave bem as mãos antes e não se queixe do cheiro depois).

Espere que o alho comece a fritar (não dá tempo para beber café, nem para tomar banho) e então junte as conquilhas e observe-as enquanto abrem. Não pense no sofrimento delas, faça de conta que é outra pessoa quem está a torturar as pobres, com as chamas do inferno (com alho ainda por cima). Não se deve sentir mal consigo pois isso afecta o resultado final.

Uma vez abertas as conquilhas (isto é, uma vez concluída a mortandade), retire-as para uma tigela e deite-lhes um pouco de sumo de limão, assim como os coentros picados.
Num tachinho (não sei se o Google ajuda nisto dos diminutivos, mas eu gosto) é preciso deitar mais azeite – de novo para cobrir o fundo – pois o pão, entediado com a espera, vai-se ao azeite como o gato às filhozes(coisa nunca vista, imagino eu) e todo o azeite desaparecerá em menos de um ai. Juntam-se então, os dentes de alho, que estavam com as conquilhas e mexe-se tudo (pão, azeite e alho). Vão-se deitando golinhos de água até o pão dar sinais de estar farto.  Nessa altura entram as conquilhas.
Não as retire das cascas, pois só assim, cada uma delas receberá um pouco da sua atenção, acabando por parecer mais do que realmente são. Misture as conquilhas e todo o molho que elas tiverem, na açorda. Junte o ovo, apague o lume e volte a mexer antes de (se) servir.  Pode então juntar um pouco mais de azeite, por causa das coisas. 

Coma a papa mole e saborosa  lentamente e  em paz. Pense em todos aqueles que não sabem o que é bom e evite trincar os alhos. Dedique-se a lamber cascas e continue a comer a açorda até nada sobrar. 
Para comer, use uma colher de sopa. 
Se tudo isto tiver sido um acto solitário, até pode lamber a tigela no final, mas não é obrigatório.
Para acompanhar a açorda, pode servir umas azeitonas britadas, que ligam bem.

No final aprecie o prato das cascas e sorria regalado.

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