23/04/2014

Um arroz, outro por causa do primeiro e por fim a açorda

Para a Noélia

Nestes dias de crise, em que o dinheiro encolhe antes de nos chegar ao bolso, é mais dificil aceitar restaurantes onde não se coma bem, onde não nos tratem bem, onde nem tudo aconteça sem confusões ou atropelos. Gastar dinheiro para comer, apenas quando se trata de coisas muito boas ou muito bem feitas, se possível ambas, pois se assim não for fico em casa e cozinho.

Nesta ordem de ideias, durante a viagem de comboio a caminho das férias algarvias, eu e minha filha antecipávamos o possível almoço na Noélia(será que chegamos a tempo? Haverá mesa?), sabendo que, fosse o que fosse,  seria composto por coisas boas e muito bem feitas. Tudo correu bem com a viagem e com o apartamento reservado, e assim o almoço aconteceu. E claro, foi tudo o aquilo que esperávamos e mais ainda.

Começámos por umas favas deliciosas do barrocal, tenras e doces, que  na sua simplicidade conquistaram a minha filha, e ela nem gosta(va) de favas. Chegaram para acompanhar uns biqueirões fritos, que desapareceram como por milagre, deixando sorrisos de satisfação. Favas e peixe frito era coisa da minha avó Celeste e em segredo recordei-a nessa altura.

Depois seguiu-se o arroz. Escolhido pela minha filha e que se anuncia para 2 mas também chega para quatro. Arroz de limão com corvina e ameijoas. Só por escrever já começo a salivar.
Servido no tacho onde foi feito , sem parvoíces que nos distraiam do que importa, ou seja daquilo que nos prometem no nome que é quase a receita.
O caldo delicioso e fumegante, com o sabor do limão a espreitar entre o peixe e as ameijoas, estava tão bom que a minha filha tratou de lhe chamar molho e esteve para pedir uma colher para o comer assim. Eu disse que esse caldo iria sendo absorvido pelo arroz que ainda estava a acabar de abrir, e para a entreter contei uma história antiga, de outro arroz muito bom(cabidela) do qual o cozinheiro gabava os vários sabores associados à mudança de tempoeratura .
No primeiro olhar, estranhei não ver uns coentros frescos, mas quando provei percebi que assim é que estava bem. O sabor do peixe misturava-se com a  cremosidade do arroz, numa combinação suave e quase adocicada, a que o limão dava o contraponto necessário. Estava delicioso ao ponto de termos levado para casa o que sobrou e de sorriso nos lábios, eu e a menina, agradecemos, despedimo-nos da Noelia e fomos a casa deixar o nosso jantar, antes de rumar à praia, pois para isso tínhamos feito a viagem(acho eu).

No dia seguinte voltámos ao trabalhoso programa de sol e mar, naquela praia quase vazia com a sua infindável extensão de areia fina. De lá saímos com conquilhas apanhadas entre mergulhos, para disfarçar o escaldão.  Na minha cabeça decidira tentar um arroz de conquilhas sem disfarces, como o arroz da Noélia.
Comecei por abrir as conquilhas numa frigideira com um fio de azeite. Depois retirei os bichos das cascas e guardei o caldo.
Cortei grosseiramente uma cebola e deixei-a amolecer um pouco com novo fio de azeite, um início de refogado, logo interrompido pela água para cozer o arroz. Juntei o caldo das conquilhas e uns talos de coentros. Deixei levantar fervura e deitei o arroz carolino. Dez minutos depois entreguei as conquilhas aos calores do arroz já quase cozido,  apaguei o lume e levei o tachinho para a mesa onde a minha filha esperava.
Ficou perfeito na sua simplicidade e o suave sabor marítimo mas adocicado das (muitas) conquilhas sobreviveu. Um bom arroz com o prazer extra de ser feito com conquilhas apanhadas por nós. Isto para cromos da cidade ainda é uma coisa especial.

Continuando as férias, voltámos à praia e como a maré estava a jeito,  repetimos a apanha do pequeno bivalve, mas, ainda na praia a minha filha disse que gostava de uma açorda de conquilhas e eu logo pensei: açorda ou migas?
Fui pela menina e fiz uma açorda como se faz na minha terra (Lisboa), ou seja umas migas aguadas e macias que me lembram a juventude em que essa açordinha aparecia muitas vezes à mesa, a propósito de peixe frito mas não só. Ainda hoje gosto de um bifinho frito com açorda e sei que não sou o único.

Isto da açorda não tem muito para contar. Comecei como no arroz,  por abrir as conquilhas, rejeitar as cascas e guardar bichos e caldo. Demolhei umas carcaças migadas, fritei o alho no azeite, juntei o pão escorrido e fui deitando golos de água para  fazer aquela papa que caracteriza a açorda do meu passado. Acabei juntando os bichos, coentros picados e mais um pouco de azeite, sal e pimenta.
Ali estávamos nós, na varanda, pai e filha, com o sol a desaparecer e os pássaros a cantarolar, comendo uma açorda antiga, preparada a pedido da mais jovem.

Tudo tem de mudar para poder continuar.

1 comment:

  1. sim... o arroz de limão da Noélia, maravilhoso! Tb eu vou tentar faze-lo um dia.
    :)

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