19/08/2015

Memórias - Os doces



Uns dias penso que as palavras são curtas. Noutros, sei que é apenas a minha arte que é curta para reflectir o que sinto, mas na verdade, qualquer coisita é melhor que ficar calado e deixar cair o que pode ser contado.

O verão na cidade não tem grande cheiro. Tem espaço, tem calor, mas o cheiro é o mesmo. 

O verão da minha memória tem sempre cheiro. Cheira a maresia, cheira a camarinhas, cheira a mexilhões arrancados da rocha, e a creme nivea, mas também cheira a pêssegos, a calor, às cigarras  (há memórias onde confundo a sesta, o calor e o ruído das cigarras como se partilhassem um cheiro vago que dura o tempo de adormecer) e a doces fervilhando  nas panelas da cozinha em Torres Novas.

Acho que a minha Avó gostava de fazer doces. E fazia muitos. Na despensa havia sempre uma colecção de frascos cheios,  que parecia não ter fim. Para ela os doces eram o complemento natural da fartura de fruta que o Verão trazia. Principalmente ameixas, pêssegos, tomate e por vezes o delicioso doce de melão. Qual o melhor? Talvez o de tomate, pois apesar de estar sempre presente e em grandes quantidades, continuo a gostar dele como se fosse uma surpresa.
    
Recordo bem a urgência do doce de ameixa, que era feito para evitar que a abundância das ameixas,  de repente todas maduras,  desse em desperdício, coisa inaceitável para os meus Avós.
 Então havia baldes cheios de ameixas na cozinha e a minha Avó ia preparando os doces que alegrariam o frio do Inverno.
Hoje, continuo a fazer doces – este ano já fiz de cereja, de alperce, de pêssego e de rainhas-cláudias – como se tentasse apanhar esses momentos perdidos e acima de tudo porque acredito que existe uma ideia a preservar.
Fazer um doce é muito mais que a soma de gestos, que depois acaba numa fatia de pão distraída ao pequeno-almoço, como deve ser. Distraído como eu as comia então, na grande mesa  da cozinha, quando a minha Avó ia abrir um frasco de doce de ginja (na verdade este é o melhor de todos, mas é tão raro que fica no rol dos esquecidos), para eu espalhar na carcaça já com manteiga. 
Imagino que a minha Avó esperasse um comentário e imagino que estes fossem escassos, pois sei que comia com os olhos na rua, onde crescia tudo, até as pedras, para eu descobrir diariamente. 

Fazer doces em vez de os ir comprar num supermercado qualquer, é reclamar uma tradição antiga e assim fazer parte dela. É voltar à infância e ser à vez a criança e a Avó (o meu Avô fazia muitas coisas mas não doces). E é tão simples.

O último que fiz foi de rainhas-cláudias e levou:

  • 1,500 Kg de ameixas sem caroço e cortadas em pedaços
  • 700g de açúcar
  • 1 casca de limão
  • 1 pau de canela
  • 4 caroços


Abri os caroços para retirar a amêndoa que quebrei e deixei de molho em água quente
Deitei o açúcar sobre as ameixas cortadas e juntei a casca de limão e a canela. Deixei assim 1 hora
Levei ao lume, juntei a água das amêndoas que já estava meio gelatinosa e deixei fervilhar até chegar aos 104º. 
A minha avó não tinha um termómetro destes, e por isso olhava para os pingos na colher de pau até achar que estava bom, mas o método do prato com um pouco de doce no frigorífico, também serve.

Podem-se esterilizar frascos, mas quando o doce é para comer rápido, uma tigela e papel vegetal são quanto basta.  

14/08/2015

Batatas e beldroegas

Aqui há tempos a minha filha surpreendeu-me ao perguntar: Quando é que fazes aquelas batatas esmagadas com beldroegas?

Eu já me tinha esquecido desse belo petisco, o que acontece muitas vezes.
Sou pessoa de fases. Entusiasmo-me com um producto, uma técnica ou uma receita e faço-o repetidamente. Depois, alguns sobrevivem, outros não. Desses, há os que regressam trazidos assim, por uma pergunta inocente, outros ficam apenas para trás e outros ainda são esquecidos,
como se nunca tivessem acontecido.

Estas batatas com beldroegas, não sei onde estavam, mas não merecem o esquecimento.

Beldroegas é uma palavra que só apareceu na minha vida adulta e, no fascínio que a comida alentejana tem para mim. O sabor das folhas verdes foi entrando "devagar, devagarinho, foi ficando até ficar". Primeiro na sopa tradicional, depois descobri que na Turquia também comem em arroz e até num tipo de tzatziki. Por fim acabei por experimentar assim, com batatas esmagadas e por fim, houve quem mo recordasse.

Batatas  ...........................  3
Beldroegas (folhas)  ........ 1 chávena
Azeite  ............................. 3 colheres de sopa
Chouriço ........................ 10 rodelas
Alho ................................. 2 dentes
Azeitonas ......................... 6 verdes picadas 
Oregãos, Sal, Pimenta   qb

Cozo as batatas, esmago e reservo. Escaldo as folhas das beldroegas escorro e junto às batatas.
Levo a lume brando uma frigideira com o azeite. Junto as rodelas de chouriço e os dentes de alho. Deixo que fritem lentamente sem queimar. No final salpico com vinagre, para dar sorte ou apenas porque gosto do borbulhar e do cheiro, e quero acreditar que se nota depois (talvez não).
Pico as rodelas de chouriço em 6 pedaços, esmago os alhos e junto azeite e o resto às batatas. Junto também as azeitones e os temperos. Misturo tudo e antes de servir levo ao lume para aquecere alourar um pouco.

Comemos este petisco com umas kefta de borrego, que apareceram no menu pois eu precisava de testar o ras-el-hanout numa receita apropriada.


Borrego ........... 400g de carne picada
Cebolas --------- 2
Alho ................. 1 dente
Coentros picados . 2 colheres de sopa
Salsa picada  .......  1 colher de sopa
Ras-el-hanout ......  1 colher de sopa
Azeite ......................  qb
Oregãos, Sal, Pimenta qb 


No copo misturador juntei as cebolas, alho, talos dos coentros, azeite e reduzi a puré.  Se este jantar não fosse paraa minha filha, teria juntado uma malagueta verde, mas não juntei.
A este puré juntei os restantes temperos e misturei com a carne picada. Foi para o frigorífico descansar durante 2 horas (mas não é preciso) e à hora de jantar fiz as tais keftas que depois grelhei.

Durante a refeição ouvi elogios às kefta, que a minha filha achou muito boas. Tão boas  que nem reparara nas batatas com beldroegas, que eu fizera para lhe agradar.

Agora penso que esta receita de beldroegas já passou para o arquivo vivo e sempre que as vir, pensarei neste preparado. Quanto ao ras-el-hanout, como eu já percebera, é mesmo muito bom.  Por isso agradeço-te embora não te "ameace" com uma refeição onde o dito tempero apareça, porque não é nada o teu género...      

07/08/2015

As fajitas

Ficaram boas as minhas fajitas marroquinas, e quero lá saber que exista o Oceano Atlântico pelo meio, afinal a dieta mediterrânica assenta em produtos que vieram do Novo Mundo e ninguém acha mal.

Devo confessar que as tortilhas de trigo não eram nada mexicanas, antes piadinas italianas (imagem)


Comecei por refogar em azeite, 2 cebolas cortadas em rodelas,  1 pimento verde em tiras e 1 dente de alho picado. Temperei com sal e pimenta e deixe iganhar cor. Reservei

A carne que ficara temperada da véspera, com ras-el-hanout, alho, colorau e oregãos,  foi ao lume para cozinhar até estar bem alourada. Reservei

Na hora de comer, levei a "piadina romagnola" (este é o nome completo) a aquecer numa frigideira sem qualquer gordura. Enquanto o "panito" aquecia, esmaguei um abacate, que temperei com uma pitada de sal, sumo de meio limão e "bué" tabasco.

Para a montagem, comecei por espalhar na piadina ,1 colher de chá com mostarda de Dijon, por cima deitei 2 colheres de sopa de abacate esmagado, várias folhas de alface, as tiras de frango, cebola e pimento e um pouco de queijo fresco de cabra... enrolei com dificuldade e comi com gosto.

Não senti nenhuma confusão, antes, durante ou depois. Comi à mão , alegremente e ninguém se ofendeu com a mistura do pão italiano, tempero marroquino, conceito mexicano e o resto português.

Até porque não estava cá mais ninguém.


Nota: O ras-el-hanout que usei é bom porque é recente, com os aromas vivos e quase separáveis. Muitas vezes encontramos estas misturas no supermercado e são uma desilusão, pois o seu tempo de prateleira não ajuda nada. Este é óptimo, mas o meu nariz diz-me que fazendo a mistura que coloquei no link, não se chega àqueles aromas todos. Ficará uma coisa parecida que pode ser usada em muitos pratos, mas sem todos aqueles(35??) aromas do Norte de África. Como alternativa, basta ir ao Martim Monis e comprar garam masala que tem bastantes elementos em comum e se pode usar da mesma maneira.


06/08/2015

O Belenenses quase na Liga Europa

Hoje foi dia do Belenenses jogar na Suécia e eu queria ver o jogo. Por isso pensei, para o jantar, numa coisa que não desse muito trabalho ou que se pudesse preparar com antecedência.

Tinha a intenção de fazer umas fajitas e cheguei a temperar a carne com ras-el-hanout, um tempero nada mexicano, mas eu gosto de baralhar as coisas e achei que ficaria bem com a carne do frango. Também, é verdade, andava cheio de vontade de abrir o saco do ras-el-hanout, que tu me trouxeste de Marrocos. Amanhã se verá se as fajitas marroquinas fazem sentido, pois acabei por me virar para uns pimentos recheados.

Tinha em casa desses pimentos estreitos e compridos, de sabor suave a que chamam italianos, e assei-os sem qualquer gordura, para depois os abrir e limpar por dentro. Feito isto guardei-os no frigorífico e preparei o recheio.

Para isso misturei:
  • 2 colheres de sopa de queijo creme
  • o mesmo de queijo feta
  • 1 colher de sopa de tomate seco (em azeite)
  • 1/2 dente de alho picado
  • 1/2 colher de sopa de oregãos secos
  • 1 colher de sopa de coentros frescos e cebolinho picados
  • 1 colher de chá de tabasco

Desfiz e misturei tudo, até ter um creme homogéneo, com o qual recheei os pimentos. Depois de recheados embrulhei-os em folha de alumínio para não abrirem quando os levasse a aquecer, de novo na chapa sem quaiquer gordura.

E lá começou o jogo já com os pimentos prontos para a assadela final e eu a pensar num golo que nunca mais vinha.


Ao intervalo, deitei um pouco de vinho no copo e agarrei numa mão-cheia de azeitonas britadas para petiscar. Foi então que olhei para o resto do recheio dos pimentos e resolvi experimentá-lo nas azeitonas. Tirei-lhes os caroços, enchi com o creme e fui ver a segunda parte. Esta acabou sem golos e sem azeitonas. O Belenenses eliminou o Gotemburgo da Suécia e eu fui enfim aquecer os pimentos.
As azeitonas podiam ter ficado mais bem recheadas, mas a bola não esperava...

Pimentos recheados e salada de tomate foi um belo jantar, mas aquele improviso com azeitonas, foi um belo petisco

05/08/2015

Memórias - Restaurantes


Tudo isto aconteceu muito antes de eu pensar em cozinhar, ou dar algum tipo de especial atenção às tarefas culinárias. Comer bem era natural, mas era apenas alimentação e ainda não, qualquer tipo de busca de sabores ou sensações, associados às refeições.
Mas como quase tudo começa sem nos apercebermos, eu posso agora olhar para trás e procurar raízes onde elas se tiverem fixado.  Assim, hoje escrevo sobre alguns restaurantes que tiveram um papel importante no meu crescimento, quanto mais não seja porque ainda os mantenho vivos entre as minhas memórias, por bons motivos.
Os restaurantes como sítio de frequência regular e natural são coisa mais recente. Nesse passado que agora rebusco, ir comer fora era coisa rara. E não tanto pela questão financeira, mais pela qualidade do que se cozinhava em casa. Por outro lado, deslocar uma família grande até um restaurante não se fazia de ânimo leve.
Posso dizer que ir ao restaurantes era um acontecimento. Não se ia ao restaurante sem um motivo. Alguém fazia anos, alguém estava de visita ou de partida, e pouco mais.
Lembro-me de ouvir o meu Avô falar num sítio perto de Vila Franca de Xira onde preparavam bem as enguias. O meu Pai gostava de ir ao Paco (em frente à Gulbenkian) não sei bem porquê, e ainda nos levou lá algumas vezes, sem que ficasse memória maior que o nome.




 Restaurante Maria Matos
Travessa do Elevador
2450-Nazaré

Durante as férias na Nazaré, havia pelo menos um dia de ir almoçar ao Restaurante Maria Matos, sempre por vontade do meu Avô, que fez disso uma espécie de tradição. Acho que comíamos um bacalhau aparentado ao Gomes de Sá, mas para mim tudo era motivo de festa, estar com os adultos apesar de mal chegar à mesa, ver coisas diferentes(mesmo que não fossem melhores) e se não recordo detalhes, ficou uma sensação grata associada a esse restaurante. 
Depois, começaram a nascer irmãos e primos todos os dias e cada vez eram menos as idas ao tal restaurante, que ainda existe e fica perto da entrada do elevedor que vai para o Sítio.
Nunca lá voltei a entrar, mas sempre que lá passo, sinto alguma curiosidade.





Restaurante China
Rua Andrade Corvo, 7
Lisboa

Mas com tanta coisa boa e tanta gente para cozinhar delícias tradicionais, como foi que pus o pé fora da cozinha nacional?


Acredito que isso começou no dia em que fui ao Restaurante China, que ficava na Andrade Corvo quase na esquina com a Duque de Loulé. Devia ser o aniversário do meu tio Álvaro e a ida a um restaurante chinês foi motivo de grande excitação, pois poucos sabiam ao que iam.

Sendo eu o mais velho duma catrefada de primos, fui a estes sítios, quase sempre sem a companhia de outras crianças, tendo assistido a muitas cenas que hoje parecem estranhas, mas tudo era diferente e novo para mim, e neste caso do restaurante Chinês, para quase todos.

Recordo a risota que provocava a descrição dos pratos, principalmente quando o meu tio informou que os crepes tinham algas, coisa impensável de meter na boca, excepto por engano num mergulho mais arrojado no mar bravo da Nazaré. Muitos crepes, muito arroz chao chao, muito molho de soja, porco doce e banana frita para terminar. Tudo tão bizarro como os pauzinhos que ninguém sabia usar.

A memória da primeira visita a um restaurante chinês, ficou bem presente, e se nos anos seguintes, comi em muitos outros, melhores e piores, um pouco por todo o lado. A única coisa que se pode comparar a esta visita, foi a já recente ida a um clandestino, com a dificuldade de comunicação, a busca por cadeiras e por fim a travessa de línguas de pato.

A foto do guardanapo do Restaurante China pertence aos documentos de Vitorino Nemésio, pois na sequência duma visita ao restaurante, o Professor escreveu uns versos nas costas deste.
Ver






 Restaurante da Estação
Estação de Comboios
S.Martinho do Porto


E o caril?
Essa mistura de especiarias e técnicas sem fim, que se encontra por todo o lado em versões que vão do sublime ao patético. Como foi que começou essa minha história?
Passando por cima daquelas travessas de caril de lulas que apareciam nas festas dos anos 70 e que nunca me fascinaram, recordo uma história que é bom exemplo do baixo nível de conhecimentos que nessa altura naturalmente tinha.
Um dia a minha Mãe apresentou um prato novo de frango, com um cheiro intenso e um bom molho de cor escura, que por muito que ela negasse, todos à mesa teimavam em dizer que era um caril. Pois bem, não era nada disso, apenas o singelo frango com sopa de rabo de boi, que assim parecia uma exótica novidade.

Mas caril a sério, esse que hoje continuo a comer, apareceu na minha vida por uma série de acasos que trouxeram uma senhora desde Moçambique até ao pequeno restaurante da Estação de Comboios de S. Martinho do Porto.
Em 1970 trocámos a Nazaré por S. Martinho do Porto, e foi aí passei as férias da minha adolescência. Como parte do crescimento e da liberdade que as férias concediam, no meu grupo de amigos de verão, instalou-se o desejo de ir jantar fora, para assim se beberem umas cervejas, fumar e conviver sem supervisão de adultos. E se isso não acontecia com muita frequência, foi no entanto o ínício de novos costumes e relacionamentos.
Como o orçamento era reduzido, havia muita imaginação e recorria-se aos locais mais baratos. Não sei como aconteceu, talvez por falta de fundos, um dia cheguei ao referido e muito pequeno restaurante da estação dos comboios, para comer o Caril de Frango que me tinham recomendado. Que revelação aquilo foi! O sabor forte e vivo, os coentros(então pouco usados) pareciam coisa de génio, e o molho onde conviviam o picante, o ácido e o adocicado conquistou-me para sempre.
Um dia resolvi provar outra coisa e descobri o Sarapatel que ainda hoje é dos meus pratos preferidos.

E nem sei o nome da Senhora que tão bem cozinhava...





O Pereira de Alfama
Rua Guilherme Braga, 22
Lisboa




Para acabar, falta referir o Pereira de Alfama, este apenas porque foi o primeiro restaurante onde entrei sem adultos para jantar. Deve ter sido uma aventura, ir com os meus colegas do liceu - o Manel, o Carlos e o Albano, tudo gente da zona mas nenhum de Alfama, comer o gigantesco cozido que eles serviam. Lembro-me que era uma tasca escura, com doses enormes, na quantidade e variedade, que nós devorámos sem esforço.


Nunca lá voltei, mas pensei nisso muitas vezes. Entretanto fui descobrindo outros sítios (por exemplo a Trindade ou a Bicaense da Dª Amélia ) e passaram-se muitos anos, até eu ter voltado a comer por aqueles lados.