19/09/2016

Um primo resolve casar



(para a Marília e o Rui) 

Um primo resolve casar. Os noivos, ajuizados, optaram por uma coisa ligeira, sem atropelos ou grande etiqueta, para além do que recomenda o bom senso.

Apareçam arranjadinhos e venham almoçar, lá na quinta da família. Para alguns, o recado tinha um pedido: podias fazer uma entrada ou um doce…

E eu que viria do Algarve, com paragem breve em Lisboa. apenas dormir e trocar de roupa, pensei no que poderia fazer, que se pudesse preparar com antecedência e acabar na véspera do evento, sem grande ginástica ou nervosismo.
Saiu-me uma salada de batata, com pernil e língua fumados, pepinos de conserva e vinagreta, e não saiu mal. A tigela com a salada, acabou tão perto do gaspacho,  que houve quem pensasse ser alguma modernice para o dito.
Mas adiante, que isso não é o assunto, apenas introdução. 

Como sabe quem come  o que faço ou lê o que escrevo, gosto de aproveitar, sejam cascas de camarão, pão duro, queijo ressequido, raízes de coentros ou qualquer caldo de cozer carnes ou legumes. Olho para eles e penso: isto ainda dá qualquer coisa!


Foi o que pensei quando, terminada a longa cozedura,  escorri os pernis e as línguas fumadas, esses tais que acabaram em salada, no casamento, ao lado do gaspacho.  Pensei apenas, pois os apertos horários não permitiam delongas, e assim congelei o caldo, que hoje finalmente saiu da sua hibernação, e voltou à vida.

Vou fazer um arroz. Com cenoura, couve e feijão verde.

Seria vegetariano se não fosse o caldo. Seria de cozido se tivesse as carnes. Seria arroz de forno se eu não preferisse um carolino caldoso. Seria acompanhamento se precisasse de companhia. Seria risoto se não fosse o que é, um malandrinho e saboroso arroz do caldo dos fumados  que, noutros casos, poderia ter ido pelo cano abaixo.  

Ai que me babo antes do tempo, eu que ainda nem escaldei a couve!

Então faço assim:
Escaldo as folhas de lombardo já cortadas, passo por água fria e escorro
Lavo, tiro o fio e corto o feijão verde. Raspo a cenoura e corto em rodelas   
Pico cebola e alho para o refogado inicial, que será pouco puxado, pois o caldo tem sabor que chegue, porque além das carnes, levou louro, cebola, alho e malagueta…
Depois de amolecer a cebola, junto o feijão e a cenoura, junto o arroz, mexo, espero uns segundos até o arroz começar a pedir que o molhem. Só então junto o caldo medido (2,5 vezes o volume do arroz) e quente, junto a couve, mexo de novo e tapo (deve ficar mal tapado para sair vapor). Coze durante 12 minutos e descansa 3 ou 4… 
Nesta altura (ou seja, agora que escrevo) penso: umas gotas de vinagre?  Ainda não sei a resposta. O vinagre acorda o palato, mas rouba sossego e conforto.  

Escrever é quase tão difícil como cozinhar, mas aqui, se quiser, ainda posso apagar o vinagre!

Contado já está, agora só falta fazer! 

18/09/2016

Grão com mão de vaca

Nunca tinha feito, e é daquelas coisas que de quando em vez me apetece, mas, por ser um prato barato, do tipo farta-brutos, quando o encontro, raramente é bom. Este foi feito com muita calma e muito empenho. Talvez por isso,  o resultado agradou-me, apesar do grão poder ter ficado um pouco mais cozido.

Fiz tudo como manda a receita:

  • demolhei e cozi o grão 
  • escaldei, limpei, cozi e desossei a mão de vaca
  • fiz um bom refogado com muita cebola picada
  • deitei-lhe alho, cominhos e cravinho
  • deitei concentrado de tomate
  • uma malagueta
  • juntei as rodelas de chouriço
  • juntei a cenoura
  • juntei a mão de vaca com um pouco do seu caldo
  • juntei o grão cozido também com um pouco do caldo
  • deixei tudo apurar em conjunto 
  • acabei com coentros picados 
  • e um arrozinho para acompanhar
Palavras para quê? Ou se gosta ou não se gosta, e quem gosta mesmo, deve fazer como eu e pôr mãos à obra, pois qualquer dia nem nas tascas o preparam.

Amanhã levo o resto a passear, para ser comido e valorado por mais alguém. para além deste cozinheiro-escriba. 

07/09/2016

Açorda de conquilhas



Para fazer esta receita, são necessários poucos ingredientes, mas um deles exige um pouco do cozinheiro acidental. As conquilhas, que devem ser apanhadas na praia.  

Procure-se para isso, uma praia de areia fina, e longas marés. Sem rochas ou ondas alterosas. Uma praia onde seja possível a vida para as conquilhas, evitando locais como o Guincho ou a praia fluvial de Constância, por aí não haver animais destes. A zona da Ria Formosa é especialmente indicada, mas sei de quem, com muita paciência, tente e consiga apanhá-las na Costa de Caparica. 

Nem pensar em ir comprar conquilhas ao mercado ou substituí-las por qualquer outra coisa. 

Na praia deve-se optar pela maré vazia, e pelo método mais simples possível. Enterrando ligeiramente um pé na areia(numa zona onde a água chegue), rodar o mesmo pé, levantando um pouco da referida areia (aí é onde as pobres vivem e se julgam a salvo), deixando à vista os pequenos bivalves. Destes, recolher apenas os que apresentarem as duas metades da casca unidas.  Deve-se ter um balde, um saco ou uma garrafa vazia para transportar as conquilhas até casa, com alguma água que permita prolongar-lhes a vida até ao momento fatal (para elas) de serem salteadas. 

Durante a recolha evite-se o contacto com desconhecidos, que pareçam levar a cabo a mesma tarefa, pois o risco da competição, pode resultar na apanha excessiva, com posterior impacto na receita.

Como já aconselhei, não apanhe demasiadas – o excesso leva a mente pelos caminhos da gulodice desenfreada, em que se consomem as conquilhas como se fossem tremoços, umas atrás das outras, molhando no fim o pão no belo molho, quando já nada mais há para comer. Não queremos isso!
Não pare de apanhar cedo demais, também. Se ao olhar o resultado, vir 5 ou 6 conquilhas, o mais certo é desanimar e abandonar o fruto do seu labor, para se dirigir a um qualquer antro onde lhe sirvam bifes, lagostas ou sopa de feijão com couves.

Tendo recolhido a quantidade justa de conquilhas, na praia certa, sem cometer pecado maior que retirar os pobres animais do seu habitat, para acabar com eles na frigideira, dirija-se a casa pensando no que se pode fazer para os cozinhar, ou pensando num amor fugidio, ou mesmo nos versos do Aleixo ou de José Duro, se souber alguns.

Na hora da verdade, não queremos panacotas, tártaros ou em geral pratos com nomes estrangeiros.  
Não espere milagre maior que a simplicidade do sabor (se o souber preservar) e uma magra recompensa para o estômago. 
Pode ser uma canja, um arroz, pode até deliciar-se com esparguete de conquilhas, mas recomendo a mais pobre das receitas. A açorda.
Para isto deve ter em atenção os poucos mas importantes detalhes que se descrevem.

Açorda de conquilhas para um

  • ·         O pão deve ser “carcaça da véspera” – 2 unidades
  • ·         Os alhos se possível dos roxos -   2 unidades do tipo dente
  • ·         Coentros verdes, frescos e espigados, melhor se acabados de apanhar no quintal – muitos
  • ·         Um bom ovo de galinha,  fresco e cru
  • ·         As conquilhas possíveis
  • ·         Sal, pimenta e limão  para temperar


Migue-se o pão e junte-se uma pouca de água, apenas para o humedecer
Escolha uma frigideira, nem grande nem pequena – se não sabe o que é uma frigideira, pode pesquisar no Google e depois voltar aqui.
Na frigideira deite-se azeite a cobrir o fundo. Leve-se então a frigideira ao lume e juntem-se os dentes de alho descascados e ligeiramente esborrachados (pode-se pedir a um vizinho ou a um policia que vá a passar que faça isto, desde que lave bem as mãos antes e não se queixe do cheiro depois).

Espere que o alho comece a fritar (não dá tempo para beber café, nem para tomar banho) e então junte as conquilhas e observe-as enquanto abrem. Não pense no sofrimento delas, faça de conta que é outra pessoa quem está a torturar as pobres, com as chamas do inferno (com alho ainda por cima). Não se deve sentir mal consigo pois isso afecta o resultado final.

Uma vez abertas as conquilhas (isto é, uma vez concluída a mortandade), retire-as para uma tigela e deite-lhes um pouco de sumo de limão, assim como os coentros picados.
Num tachinho (não sei se o Google ajuda nisto dos diminutivos, mas eu gosto) é preciso deitar mais azeite – de novo para cobrir o fundo – pois o pão, entediado com a espera, vai-se ao azeite como o gato às filhozes(coisa nunca vista, imagino eu) e todo o azeite desaparecerá em menos de um ai. Juntam-se então, os dentes de alho, que estavam com as conquilhas e mexe-se tudo (pão, azeite e alho). Vão-se deitando golinhos de água até o pão dar sinais de estar farto.  Nessa altura entram as conquilhas.
Não as retire das cascas, pois só assim, cada uma delas receberá um pouco da sua atenção, acabando por parecer mais do que realmente são. Misture as conquilhas e todo o molho que elas tiverem, na açorda. Junte o ovo, apague o lume e volte a mexer antes de (se) servir.  Pode então juntar um pouco mais de azeite, por causa das coisas. 

Coma a papa mole e saborosa  lentamente e  em paz. Pense em todos aqueles que não sabem o que é bom e evite trincar os alhos. Dedique-se a lamber cascas e continue a comer a açorda até nada sobrar. 
Para comer, use uma colher de sopa. 
Se tudo isto tiver sido um acto solitário, até pode lamber a tigela no final, mas não é obrigatório.
Para acompanhar a açorda, pode servir umas azeitonas britadas, que ligam bem.

No final aprecie o prato das cascas e sorria regalado.

05/09/2016

Uns Camarões da Ria Formosa



Gosto das circunstâncias, da realidade colocada no seu lugar, das coisas simples, da proximidade.  
Pode parecer estranho ter começado assim, para vir falar sobre camarões (ou serão gambas?). Uns camarões muito frescos mas frágeis, regionais e pouco comerciáveis, até pelas circunstancias. 
Encontrei-os aqui no mercado das Cabanas, pequenos, de um rosa pálido e com um ar delicado, tipo se me tocas desmaio
Não se lhes pode mexer muito, senão caiem as cabeças e por isso, alguns pensarão que se trata de bichos de pouca confiança, quando na verdade o que eles são é sensíveis e têm de ser tratados com carinho. 

- Não aguentam muito calor, disse-me a peixeira. Quando lhe perguntei o preço do camarão ela corrigiu-me,  dizendo que era galinha do mar(mas isso é um peixe, acho eu!). Se calhar percebi mal, mas hei-de esclarecer o tema, até porque fiz com eles um belo petisco, como a seguir se conta.

Na primeira tentativa, fugiu-me o pé para o arroz, como acontece tantas vezes. Descasquei os bichos e com as cascas, uma cebola, alho e louro, fiz um caldo, que coei aqueci até quase ferver. Então apaguei o lume e juntei os camarões, para uma cozedura de lume apagado, durante 2 minutos. Retirei-os e provei. Estavam cozidos, tinham uma cor rosa pálida quase branco e eram doces. Fiquei contente. Mais tarde no arroz perderam um pouco do seu charme, pois a textura do camarão ficou  parecida com a do arroz. Pensei que mereciam melhor.
No dia seguinte voltei a comprar e pensei em fritá-los. Com ou sem casca? Optei por uma coisa parecida com as gambas al ajillo, mas adaptando a receita aqueles camarões quase metafísicos.
Descascados os bichos e postos a descansar no frigorífico (que aqui está um calor de rachar) com umas pedrinhas de sal, levei ao lume uma frigideira com bastante azeite e com o lume fraco fritei lentamente dois dentes de alho fatiados. Quando o alho começou a chegar ao tom do caramelo, tirei-o da fritura, temperei-o com sal e guardei. Para a frigideira entraram o louro, e uma mão cheia de cabeças de camarão. Estas dariam o sabor, ao serem bem fritas e depois espremidas até deixarem o azeite bem corado. 
Para o nosso almoço, havia ainda um ceviche tradicional de corvina – Corvina marinada em lima, com cebola, coentros e abacate e por isso, fui acabar o ceviche e fazer torradas, antes de acabar os camarões
Para finalizar o “Ajillo” e depois de bem espremido todo o óleo, levei de novo a frigideira ao lume para aquecer e aí fritei os camarões 30 segundos de cada lado. Temperei com sumo de limão e coentros e levei para a mesa.
O resultado, foi bem melhor do que eu esperava e sou capaz de dizer, que é a maneira perfeita de os preparar, servidos em cima de fatias finas de pão torrado, com o delicioso molho deitado abundantemente, a suavidade dos camarões parece quase uma manteiga. 
A breve fritura fica-lhes bem e aquele azeite de fritar as cabeças é uma delícia.

Só me falta saber mesmo o nome dos camarõezitos, já que esse de galinha do mar não me convence
 
...

Horas depois:
-Madalena queres arroz ou açorda de corvina? 
- Pode ser açorda, pai.

E assim, com o caldo feito do resto das cascas dos camarões e das espinhas da corvina, mais meio lombinho que eu surripiara ao ceviche, um pouco de tomate, cebola, alho, 2 carcaças  e um ovinho, fez-se e comeu-se uma açordinha bem boa. 

Vidas em férias!  

PS: ao que parece, percebi mal o que me foi dito. Terá sido "gambinha do mar" o que na verdade não é um nome. Qual será o nome destes bichos? Nos dias seguintes não voltou a haver - com vento não aparecem - disseram-me...