Há dias de cozinhar para mim, uma coisa entre a gulodice e a curiosidade, dias de experiências ou então de comer aquelas coisas que estão sempre no fundo do coração e às vezes não se podem fazer para mais ninguém.
E há dias de cozinhar para os outros, de preferência poucos e idealmente apenas um, que depois se sentará comigo à mesa e poderá ou não perceber que aguardo algum comentário, que espero ter acertado, não no sal mas no coração de quem partilha comigo a mesa e o que preparei.
Também há dias mistos, em que se junta tudo.
Apeteceu-me fazer um belo arroz de peixe para a minha filha e para isso comprei uma cabeça de pescada. A cabeça é de onde se pode extrair mais sabor para o caldo e, quando é grande, tem muitos lombos e lombinhos branquíssimos, lascantes e deliciosos para ilustrar o arroz e fazer dele coisa digna da minha princesa.
No entanto... havia a questão do meu almoço. De entre os pratos mais simples que esperam no fundo do coração, há sempre lugar para aquilo que em Lisboa se chama uma açorda.
Caldo de cozer a pescada, pão duro, alhos, coentros frescos, azeite, umas migalhas de peixe subtraídas às espinhas, um pouco de pimenta preta e aí está o almoço. Numa tigela e com colher de sopa, uma papa fumegante, tão perto da essência que a como sem pensar em nada, como se aquilo fosse parte de mim.
Na base de tudo está o caldo. Água, cebolas, alho francês às rodelas, 1 cenoura, 1 folha de louro, 2 dentes de alho, uns talos de coentros, sal e pimenta.
A cabeça da pescada, que ficou de sal durante 2 horas, entra no caldo quando este já
fervilha e ao fim de 5 minutos, apaga-se o lume, coloca-se a tampa e fica assim mais 15/20 minutos.
Depois é preciso separar o que se quer ver, ou seja os tais lombos, lombinhos, lascas e bochechas, que ficam de reserva até à hora do arroz, devolvendo ao caldo as peles, espinhas e mais peças soltas, que aí dão o melhor de si.
Voltando ao almoço, roubei então um pouco desse caldo para a açorda, e ao desfazer o pão, penso como nos afeiçoámos a este preparado que deve ter origem nas conquistas romanas e fizemos dele bandeira duma região, bandeira também duma pobreza que se alimentava de migas, açordas e sopas, sem saber que havia futuro nessas, tantas vezes tristes, papas de pão e água.
Já o arroz do jantar foi coisa de maiores atenções, porque quando eu e a minha princesa nos sentamos à mesa e há no meio uma panela fumegante de arroz de peixe, é como se a sombra da Noélia se acercasse e eu faço tudo com extremo cuidado, para sair vivo de eventuais comparações. No final senti que estava bom, mas... (a galinha da vizinha é mesmo melhor que a minha)
O Arroz:
Salteio ligeiramente o carolino em azeite com um pouco de alho, junto-lhe o caldo a ferver, provo. junto umas pedras de sal, tapo, vejo as horas, e ao lado aqueço um pouco mais do caldo para depois amornar as lascas do peixe que se juntarão ao arroz 2 minutos antes de apagar o lume. Nessa altura entram também os coentros frescos picados e sumo de meio limão. Mexo, provo, penso, mas tudo o que resta é deixar o arroz em paz para acabar de cozer.
Vai para a mesa com a tampa posta e muito caldo. Volta da mesa a panela vazia e eu sorridente por dentro.
A menina não fez comentários, mas repetiu até não haver nada. Que mais posso querer?
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