Uma e outra vez regresso à praia das Cabanas para
descansar, passear sem rumo, pela praia, mas sempre também para visitar a Noélia.
Faço-o por gostar de vê-la, por causa da sua boa comida e porque me faz pensar em assuntos que me interessam, relacionados com a gastronomia nacional e os seus caminhos.
Desta vez até vim sózinho, descansando e comemorando o estágio no Boi-Cavalo, ainda bem recente, para ser motivo de conversa. E, com esta "vasta" experiência do lado dos fogões, posso incluir temas novos na conversa com a Noélia, ela que num dia trabalha mais que eu durante a totalidade do estágio. Mas imagino que ela desculpe a excitação deste aprendiz de cozinheiro.
***
A Noélia acha que devia ter mais formação, diz que
não sabe nada de especial, que são os bons productos que a motivam, diz (por
outras palavras) que só tem memórias e coração, mas está a ser muito modesta. O
que ela faz é bem difícil. Preparar, temperar, cozinhar mantendo sempre
presentes mesmo no nosso palato, as memórias e o coração, que por acaso é o que
mais falta em muitos dos restaurantes Portugueses que visito.
Principalmente nos novos.
Memória e Coração. Memória e Saudade. Memória e
Reencontro. Desenhar na mesa um caminho até uma felicidade que foi vivida mas
mal entendia, quando muitos dos sabores eram apenas marcos para o futuro.
Lembro-me de alguns dos meus:
Não gostava das favas. Da Rica, da Aporcalhada, da
cozida para acompahar peixe-frito e hoje quero-as todas. Salivo só por pensar
nisso.
A carne guisada mais o seu bizarro ritual na hora
de comer, que seguíamos na casa paterna e incluía esmagar as batatas e misturar
arroz branco, molho, carne e os legumes esmagados(!!!).
Os croquetes e os pastéis de massa tenra. Os bifes
de cebolada. O peixe frito. O arroz de tomate. As morcelas. As pataniscas
O contínuo chegar à mesa com tempo para a sopa,
salada, prato principal e fruta. As conversas demoradas e o xiripiti final só
para o Avô. Tudo isso pertence a um caminho que ainda sigo e quero deixar, como
sugestão, para os próximos.
Frite-se o carapau pequeno! Coma-se a cabeça! Podem
ser albardados, de escabeche ou apenas fritos sem mais truques. Tem de ser bem
fresco, bem limpo, bem seco, bem enfarinhado, bem sacudido e bem frito em óleo
aquecido no ponto (qual?). Tem de ser preparado por quem gosta de o fazer. Como
a Noélia.
Ela serviu-me um tártaro de besugo, na companhia
da espinha (cabeça, espinha e rabo) bem frita. Confesso que gostei mais das procurar
bochechas, escarafunchar em busca do ínfimo cachaço e demais pedacinhos fritos
que comi, que do actor principal. Não que o tartaro estivesse fraco (podia
estar mais frio, mas era fresquíssimo, bem cortado e bem temperado), mas o
prazer de encontrar aquelas preciosidades agarradas à espinha e assim comer o
que podia ser tomado por decoração, deu-me um gozo maior. Até algumas espinhas
bem fritas eu comi!!!
Ao contrário do que pensa a Noélia, acredito que formação adicional não é o que ela mais necessita. Ela precisa é de mais tempo para as memórias, mais e melhor espaço físico para trabalhar, mais calma para nos apresentar tudo o que
continua a animar as suas cansativas jornadas de trabalho, tudo o que ela ainda
tem na memória. Precisa de calma e tempo, sobretudo para pensar no que é realmente importante para ela.
Muitas vezes já me ocorreu que a Noélia devia
reduzir o número de mesas, mas ela quer uma sala do tamanho do seu coração,
quer poder atender amigos, conhecidos, passantes, curiosos e ocasionais, todos
por igual. É essa fé que a anima, e os que como eu queriam ter mais Noélia e
menos clientes, são (somos) apenas invejosos.
...
Hoje comi arroz de ostras ao almoço.
O arroz podia ter ficado mais 30 segundos no
tacho, mas estava delicioso no sabor e generoso na quantdade. As ostras eram tudo o que uma ostra pode ser e, na
companhia da salicórnia, ficam melhor ainda - tanto as ostras como a
salicórnia, são de bem perto e, mesmo que o uso dessa halófita seja quase
novidade por cá, a planta já existia há muito.
Faço questão de almoçar e não jantar na Noélia,
pela luz e sobretudo pela calma com que a refeição decorre, ainda sem a carga
acumulada de stress que a todos vai afectando ao longo do serviço.
Mesmo assim, tão bem tratado, ia olhando para as
pataniscas de polvo, para o peixe frito com açorda ou migas de tomate , as
gambas , as douradas do mar e demais petiscos que circulavam à minha volta, mas
em especial os fritos. Essa coisa antiga, quase pé-descalço, que nunca se viu
nas mesas de festa e hoje poucos conseguem executar em condições. O peixe,
separado do mar pela fritura que, quando bem feita como é o caso, mantém
humidade e sabor nesses pedaços protegidos que só merece disfrutar quem procura
entre as espinhas, pois ficar só pelas postas maiores é não saber da missa
metade
Afinal o que importa? A conversa. O pensar. Imaginar. Executar.
Gostar
O que importa é gostar muito
PS:
Hoje vou de novo, almoçar à Noélia. É sempre melhor que uma novidade, pois já sei que vai ser bom só não sei o que vai ser. Vou acompanhado pela Andrea, pelo Miguel e pela pequena Carolina. São amigos de há muito, que só hoje vão conhecer este local de bem comer. O meu preferido.
Espero que gostem.