30/03/2017
Fomos ao Madame Petisca e gostámos da vista
Não vamos por causa do anis, nem porque seja preciso ir. Já terão desconfiado: vamos porque não podemos suportar as formas mais sutis da hipocrisia. A mais velha de minhas primas em segundo grau encarrega-se de investigar a natureza do luto, e se for de verdade, se se chora porque o choro é a única coisa que resta a esses homens e a essas mulheres entre o cheiro de nardos e de café, então ficamos em casa e fazemos companhia de longe. No máximo, minha mãe vai lá por pouco tempo e dá os pêsames em nome da família; não gostamos de impor insolentemente nossa vida alheia a esse diálogo com a sombra. Mas se da minuciosa investigação de minha prima surgir a suspeita de que num pátio coberto ou na sala foram armadas as bases da encenação, então a família veste suas melhores roupas, espera que o velório esteja no ponto e vai se apresentando aos poucos mas implacavelmente.
J. Cortázar - "Comportamento nos velórios" excerto
Ando desiludido com a restauração lisboeta e por isso, não entrei com grandes expectativas naquela casa do Alto de Sta Catarina. Aí, no seu 3º andar, está a Madame Petisca.
Apreciei a vista que é linda e só depois me demorei na ementa, sem chegar a perceber se existia uma lógica, se listaram os pratinhos (tapas, petiscos, amouse bouche, whatever...) que a cozinha sabia fazer, ou se procuraram ser ecléticos na elaboração da carta para agradar a gregos e troianos. Espero que haja muitos clientes destes últimos e que gostem, porque eu nem, por isso.
A madame explica: A criação da carta foi um processo longo e minucioso condicionado pelo rigor e primor imperativos em qualquer projeto Shiadu, entidade responsável pela concretização deste projeto. O alcance de todos os paladares era exigido, pelo que estão incluídas opções vegetarianas, acompanhamentos diversificados, cocktails com e sem álcool e os melhores vinhos portugueses.
Pelo léxico em voga, aquilo será uma "petiscaria" imagino, mas na verdade talvez seja apenas uma "vistaria", onde também servem umas coisas de comer. O melhor mesmo é o rio Tejo, a ponte, a margem sul, as cores, as luzes e , no meu caso a companhia.
Lisboa é linda, e de lá vê-se com prazer, mas na verdade, a madame é fraca de comeres.
Pedimos croquetes de espinafres, camarões (tigre?) com alho e rosbife.
Os croquetes chegaram mornos, redondos, bem panados e sem qualquer sabor, com um molho ralo de vaga memória cítrica e desinteressante. Pedimos sal, pois os croquetes eram para hipertensos e eu só o sou em casa.
Os camarões de tigreza incerta, eram bons e bem cozinhados, mas vinham afogados num péssimo molho de mostarda - na descrição não há qualquer referência à mostarda, que na verdade é o sabor dominante do molho - para mais trata-se daquela coisa amarela, avinagrada e açucarada que nos servem, quando pedirmos um cachorro, tarde e a más horas, numa roulette (longe vá o agouro). Depois de raspado o molho, comemos os camarões com algum prazer.
O rosbife anuncia-se acompanhado por uma salada de citrinos. Não sabendo eu o que seja tal salada, perguntei se podia vir sem a salada e com umas batatas fritas. Depois de consultada a cozinha, informaram que não era possível (realmente, como separar as fatias de rosbife duma apropriada salada de citrinos?) mas que podiam servir os chips de batata à parte. Quando o prato chegou, percebemos porque é o rosbife tão amigo da salada, que andam sempre juntos. Porque é pouco e a salada enche o prato. Mas não estava má a carne. Nem as batatas. Quanto à salada de cítricos é apenas uma daquelas saladas de pacote - alfaces, rúcula, canónigos - a que juntam uns gomos de toranja e uns aros de cebola empanada e frita - calamares da serra, como ouvi chamaram-lhe em Ayamonte.
Está claro que há mais escolhas. Podíamos ter pedido chamuças de bacalhau, bifes de beringela ou moelinhas com caril, mas por alguma razão penso que seria ainda menos agradável.
Hei-de voltar ao Madame P... pela vista, que vale bem a viagem, para beber um copo e ver o sol a anoitecer, mas para comer é pouco provável.
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